Desde Divino Amor, o cinema nacional vem, apesar da resseção cultural, emergindo com nomes que unem críticas sociais com ineditismos criativos. Com as pressões de um país em crise, esse seria um efeito colateral benigno, o de usar a arte como meio de reflexão das nossas mazelas, e no chamado "Novíssimo Cinema Brasileiro", estamos cada vez mais recheados de exemplares do gênero: "Trabalhar Cansa", "As Boas Maneiras", "Bacurau", "A Nuvem Rosa" são exemplos, e Medida Provisória acaba de entrar para o mesmo panteão.
Confesso que Medida Provisória é um filme que esse que esperava lançar há bastante tempo, esse atraso não se dá apenas pelo tempo de produção do filme, mas pela falta de incentivo da cultura brasileira, que desde 2016, passou a ser quase inexistente. Extrapolando o filme, mas desde o anúncio em 2019, até o lançamento do filme, em 14 de abril de 2022, a violência cresceu de forma acentuada, e as vítimas foram cada vez mais pessoas de pele negra. Dando assim um peso maior ao longa, antes mesmo de estrear.
Medida Provisória marca a estreia de Lázaro Ramos na cadeira de direção de ficção, baseado na peça "Naníbia, Não!" de Aldri Anunciação, o enredo se passa em um futuro brasileiro próximo. O governo capengamente tenta criar uma reparação - seja social, seja econômica - pelos anos de escravidão, e, após várias tentativas falhas, a solução foi feita por meio de uma medida provisória que obriga todas as pessoas pretas do país a serem imediatamente levadas de volta para a África. Pretas não, todos com "melanina acentuada", como a nova denominação para pessoas retintas.
O longa de Lázaro vai de mãos dadas com "Divino Amor" para um futuro assustadoramente próximo que eleva à máxima potência uma pequena fagulha opressora que já se instalou em nosso país. É claro que o projeto entregue com a boca cheia de dentes de políticos passa longe de uma reparação, e sim um projeto mais do que direto de higienização social, a fim de deixar o Brasil um país de brancos - o mesmo país que era originalmente povoado por índios e não por brancos, mas tá bom.
Essa mistura de drama social, com um pézinho na ficção científica tinha muito potencial, tinha. É difícil ler a sinopse e não querer sentar pelos 103 minutos a fim de saber como essa distopia se desenrolará, principalmente quando é comparada com fenômenos midiáticos como a série Black Mirror e o vencedor do Oscar "Parasita". E é aqui que se inicia o grande "porém" de Medida Provisória. Confesso que não tinha total certeza se este era ou não o primeiro filme de Lázaro, afinal, sua carreira na televisão e cinema é vasta, e o convite para sentar do outro lado da câmera já deveria ter acontecido mais cedo, mas sim, é a estreia do ator como diretor, e isso fica claríssimo durante quase todos os segundos de projeção.
Em Medida Provisória tudo tão exposto que se torna didático. Depois de um confuso primeiro ato, com milhares de informações jogadas de maneira desconexa, um eixo é encontrado quando a medida provisória do título é instaurada. A partir de então, a falta de maturidade na linguagem cinematográfica dos envolvidos fica latente quando essa linguagem é utilizada da forma mais básica possível.
O grande problema do longa é sua falta de sutileza: absolutamente tudo precisa ser dito detalhadamente ao invés de mostrado. Enquanto a duração corria pela tela, pensava em Bacurau e como o brilhante roteiro falava tanta coisa sem deixar muitos pontos explícitos, como a valorização da história e da cultura em detrimento da religião para o povo "gente" (denominação dada para quem nasce em Bacurau). O filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles encontra o balanceamento entre o que precisa ser dito e o que deve ser mostrado, e isso é conseguido a partir da maturidade semiótica da arte que é o cinema, algo que falta em Medida Provisória.
Provavelmente o exemplo mais cristalino dessa falta de domínio cinematográfico está na sequência em que um personagem branco e um personagem negro são assassinados ao mesmo tempo. Quando se utiliza de um dos elementos mais poderosos da linguagem fílmica, a montagem, o filme cai em uma ambiguidade que não soa muito certeira: enquanto uma das mortes é uma reação, a outra é puro ódio, então como colocar ambas em um mesmo patamar?
A principal trama está no fato de que os policiais não podem entrar nas casas das pessoas pretas, tendo que capturá-las para o exílio somente nas ruas. O protagonismo do filme se divide entre três personagens: o advogado Antônio (Alfred Enoch) e seu primo André (Seu Jorge) estão escondidos em casa enquanto Capitú (Taís Araújo), esposa de Antônio, foge do hospital em que trabalha e para em um "afrobunker", esconderijo de pessoas pretas que criam um movimento contra a "devolução". A separação da família, que não sabe do paradeiro um do outro, é o cerne da trama, enquanto o país entra no caos da caça de pessoas pretas.
Tirando o trio protagonista, todos os outros sofrem de uma pobreza de desenvolvimento terrível, como a Isabel de Adriana Esteves, uma Dolores Umbridge que tem receio de falar que gosta de café preto. E claro que não poderia faltar a vizinha branca que diz que já sofreu "racismo" pelo seu cabelo e que adora pessoas pretas, a empregada dela é até uma; e o diálogo de "nossa como eu queria ter a pele negra", já que é muito legal "querer" ser preto até sofrer tudo o que eles passam, não é mesmo?
Mas nem todos os tiros do longa são no pé. Afinal, é inegável a importância de toda a mensagem, por mais mastigada que ela seja. Me pergunto (com uma leve certeza) se essa mensagem vai atingir quem deveria atingir, visto que a massa reacionária vai evitar ferrenhamente qualquer aproximação com a obra. Indiferentemente, por mais cansativo que ainda seja para pessoas pretas falarem de racismo (2022, pelo amor de deus), enquanto houver a necessidade, a mensagem deve ser dita para todos os lados.
A importância de uma obra como Medida Provisória não dá para ser contestada, principalmente no Brasil atual, afogado com opressões. Contudo, o cinema como arte não sobrevive de boas intenções, e o roteiro aqui mastiga sua mensagem de forma tão forte, a fim de facilitar ao máximo a assimilação das massas, que enfraquece o impacto de algo que poderia ser enorme. São frases de efeito e poemas que anulam a naturalidade de uma obra que facilmente poderia ser um dos melhores filmes do ano.
De qualquer forma, é lindo ver salas de cinema lotadas com um longa brasileiro, escrito, dirigido e protagonizado por pretos, que discute o racismo. Porém, quando lembro de uma cena em que o Emicida "desarma uma pessoa com leitura", a total falta de sutileza da obra chegou a constranger e tive certeza que esse será um hit de progressistas de redes sociais.
Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor de filmes valvulado. Jornalista do Norte que invadiu o Sudeste para fazer e escrever filmes.