CRÍTICA | Sandman: Sonhando nos braços de Morpheus

Adaptação de HQ para a Netflix consegue realizar uma bela tradução do clássico de Neil Gaiman.
By CAJR
06/08/2022

Por muito tempo uma adaptação live-action de Sandman nunca saiu do Sonhar. Primeiro, se falou em longa-metragem; em seguida, na produção de uma série para televisão. Depois, muita especulação sobre o elenco ideal. De repente, a boa notícia chegou ao reino do sonhar: A Netflix, finalmente, atendeu a todos os requisitos do escritor britânico Neil Gaiman, e viabilizou uma bela transposição para o audiovisual de um dos mais complexos e importantes títulos das HQs.

No fim dos dez episódios que compõem esta primeira temporada da série, disponível na plataforma a partir na sexta-feira (5), a gente percebe que valeu a pena esperar. Sandman, a série, preserva o mesmo encanto que fez com que os leitores mergulhassem de cabeça naquele universo rico e sedutor que os quadrinhos apresentaram no final dos anos 1980, início dos 1990. O resultado em tela é uma fantasia apaixonante, narrada sem a presa habitual desse tipo de produto e uma direção de arte de cair o queixo de tão fiel ao original do papel. Ah, tratando-se de uma adaptação de uma obra de Niel Gaiman, é claro que o texto – tanto o falado, quanto o não-dito – são tão fortes, reflexivos e cínicos quanto o original.

Assim como na ótima Good Omens – Da Prime Video –, o próprio autor cuidou de tudo pessoalmente, ao lado do showrunner Allan Heinberg, e garantiu a qualidade que vinha exigindo nas últimas três décadas. Ciente do valor de sua obra, que ajudou a consolidar o conceito de quadrinhos para adultos, Gaiman apresenta Sonho numa história de origem a partir da adaptação dos arcos Prelúdios e Noturnos e A Casa de Bonecas. Com ele, chegam também alguns integrantes da família dos Perpétuos, composta por Morte, Desejo, Destino, Desespero, Destruição e Delírio – todos filhos da Noite e do Tempo.

“Fiquei surpreso ao voltar aos quadrinhos que comecei a escrever em 1987 e perceber como poucas coisas precisavam ser alteradas para torná-los atuais. De várias maneiras estranhas, Sandman estava à frente de seu tempo, o que significa que tivemos de fazer menos cirurgias do que imaginávamos para torná-lo relevante agora”, disse Gaiman ao Estadão. 

Assim como na obra original, a trama da série inicia com Morpheus (Tom Sturridge) sendo capturado por acidente num ritual de magia, que o mantém longe do seu reino por quase um século. Com sua ausência, o sonhar desmoronou - e, com ele, a humanidade, que perdeu a esperança, matéria-prima deste universo. Quando finalmente consegue escapar começa então uma jornada para restaurar suas ferramentas de poder e o equilíbrio entre os sonhos e os pesadelos.

Ao longo dos seis primeiros episódios temos a adaptação do primeiro arco. Já, a partir do sétimo, há uma mudança brusca na série, quando o arco Casa de Bonecas é apresentado. Mas, antes de entrar em minhas considerações sobre essas adaptações, quero falar sobre a apresentação de uma personagem tão querida quanto seu irmão caçula.

A presença da Morte acontece no episódio 6, "O Som das Asas Dela", desenvolvido com uma delicadeza desconcertante. Diferente do visual de garota branca, gótica e de ar sapeca que nos acostumamos a encarar nas HQs, ela agora é uma mulher negra, com aparência de seus trinta e poucos anos e um olhar tão piedoso quanto o cuidado que tem com a passagem dos que encerram a participação neste plano. 

Interpretada incrivelmente por Kirby Howell-Baptiste, a Morte nos lembra o tempo todo que vivemos em transformação permanente e que vale a pena aproveitar os pequenos momentos, como ela própria demonstra a Sonho quando degusta uma simples maçã com atenção plena. Ninguém quer encontrá-la e todos ficamos magoados quando temos que morrer. Mas, ela aprendeu que o que seus ‘súditos’ precisam é de uma palavra gentil e de um rosto amigo no encontro final.

Mudanças de sexo e de raça

Desde o anúncio do elenco, houve muitos comentários sobre pessoas não brancas e mulheres fazendo personagens que eram de brancos e homens nos quadrinhos. Lúcifer, por exemplo, nasceu inspirado no visual de David Bowie e agora é vivido pela elegante Gwendoline Christie – muito distante do hedonismo que Tom Ellis conferiu ao personagem na série homônima –. Já a breve participação do mago John Constantine nas HQs, foi adaptada Johanna Constantine (Jenna Coleman), uma antepassada do personagem que aparece nos quadrinhos de Sandman em arcos futuros. Mas essa adaptação – assim como a exclusão da participação da Liga da Justiça – se deu muito mais pela falta de direito de uso dos personagens da DC Comics. Outro que mudou de sexo e etnia foi o bibliotecário Lucien, agora uma mulher negra (Vivienne Acheampong) numa atuação muito segura. 

Gaiman garantiu que a ideia foi ampliar possibilidades:

“Olhávamos os quadrinhos e perguntávamos: ‘Aqui temos um homem branco. Ele precisa ser homem, precisa ser branco?’ Às vezes, a resposta era sim. E às vezes, não.  Lucien, por exemplo, é uma entidade milenar que lá atrás foi o primeiro corvo de Sonho. Não havia razão para ser branco, nem homem. Não foi uma escolha de levantarmos uma bandeira e marcharmos pela diversidade”.

Vale ressaltar que, para além de qualquer polêmica sobre as escalações, as atuações, na totalidade, estão muito acima da média do que acostumamos a ver na TV  - ou no streaming. Embora eu tenha um carinho especial pela Coleman por sua passagem em Doctor Who, acredito que, se compararmos com o resto do elenco, ela parece um pouco abaixo aos demais.

Tá, mas e o Morpheus?

Mesmo sendo um homem branco, até mesmo a escalação de Sturridge para incorporar o Sonho foi alvo de críticas por parte dos fãs. A primeira impressão é que Sturridge é jovem demais para o personagem. Mas, o ator britânico de 36 anos encontrou o tom adequado para as nuances que Morpheus exige: a arrogância natural de uma existência de bilhões de anos, o rigor com as regras de sua função, a voz devidamente impostada, a ansiedade de ver seu reino restaurado e, finalmente, a humildade que vai adquirindo com as experiências ao lado dos humanos.

“Nossa versão é feita por Neil Gaiman. É a versão dele. A responsabilidade de interpretar Sonho foi um peso, mas de certa forma conecta-se à responsabilidade de Morpheus com os sonhos de todos. Minha responsabilidade era para com os sonhos dos fãs de Sandman”, ponderou Sturridge.

Direção de arte irretocável, mas faltou uma boa sinfonia

Um problema recorrente nas tentativas de adaptação de Sandman estavam no valor de produção. No final dos anos 1990 e início dos anos 2000 era praticamente impossível criar cenários como o Sonhar e o Inferno sem um caminhão de dinheiro. Em 2022 a produção segue cara - cerca de 15 milhões de dólares por episódio - mas possível.

E conseguimos ver como esse dinheiro foi bem gasto. O Sonhar é lúdico e soturno como se deve ser, assim como o Inferno conseguiu ser eficiante visualmente - embora não seja tão imponente como nas páginas dos quadrinhos. Além disso, o figurino, em diversas épocas, culturas e personagens, são ricos, que ficam ainda melhores com uma direção de fotografia repleta de planos abertos, mostrando o quão grandioso é esse universo fantástico.

Já a trilha sonora da série é eficiente, com um bom tema ao personagem-título, mas que tenta forçar um tom épico em muitos momentos não necessários. Afinal, parte do charme de Sandman é tornar o magnífico em banal quando assistimos a história pelos olhos de uma entidade tão antiga quanto deuses.

Um sonho que se torna realidade?

Pois bem, há muito méritos nessa que é, sem dúvidas, uma das obras de mais difícil adaptação, mas a primeira temporada de Sandman não está isenta de problemas. Confesso que uma das minhas reclamações talvez seja uma percepção de fã, mas as outras duas estão sim na conta da Netflix.

Como citado acima, são dois arcos adaptados em dez episódios. São 16 capítulos, quase 500 páginas, resumidas em pouco menos de dez horas de matéria bruto. Acredito que narrativamente, assim como nos quadrinhos, esses arcos deveriam ser divididos em duas temporadas diferentes, pois a parte da série dedicada ao arco Casa de Bonecas conta com apenas quatro episódios para desenvolver novos personagens e uma história completamente diferente do que estávamos acompanhando até então.

Outro fator que atrapalha, é o famoso binge-watching - maratonar algo ou assistir tudo numa tacada só/de uma vez só. Esse formato, utilizado em todas as obras originais da Netflix, é danosos em obras que temos que digeri-las, o que é claramente o caso de Sandman. Pílulas semanais do Reino do Sonhar seria ideal para nossa melhor experiência. Algo que poderia até mesmo causar menos incômodo com a mudança brusca que a série passa quando vai adaptar um novo arco.

Tudo isso corrobora com o outro problema, que particularmente acredito ser uma das piores coisas ao adaptarem Sandman: o maniqueísmo narrativo ao definir o Coríntio como o antagonista da temporada. Embora o pesadelo seja de fato um vilão do arco Casa de Bonecas, ele nem de longe é tão importante assim para narrativa macro da série. Então, como uma tentativa de justificar essa importância do personagem, sua participação é pincelada por praticamente toda a temporada.

Essa construção não é um problema narrativamente falando, na verdade, faz até sentido, mas pensando em Sandman, o mágico da obra é o casual, a improbabilidade 

Vale a pena?

Como foi citado acima, até mesmo os problemas da série, vão passar despercebidos para muitos. O valor de produção é muito alto para uma série, assim como as atuações e trabalho de tradução dessa complexa linguagem dos quadrinhos para as telas. Se a série seguir adiante e adaptar os próximos arcos da obra original, podemos ter uma série de alta qualidade por muito tempo e então sim tornar o sonho de muitos fãs em realidade.


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CAJR - Carlos Alberto Jr

Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor de filmes valvulado. Jornalista do Norte que invadiu o Sudeste para fazer e escrever filmes.
  • Animes:Cowboy Bepop, Afro Samurai e Yu Yu Hakusho
  • Filmes: 2001 – Uma Odisseia no Espaço, Stalker, Filhos da Esperança, Frank e Quase Famosos
  • Ouve: Os Mutantes, Rush, Sonic Youth, Kendrick Lamar, Arcade Fire e Gorillaz
  • Lê: Philip K. Dick, Octavia E. Butler, Ursula K. Le Guin e Tolkien
  • HQ: Superman como um todo, assim como as obras de Grant Morrison e da verdadeira mente criativa por quase tudo na Marvel: Jack Kirby