Com o status de série da Marvel menos vista no Disney+, Ms. Marvel não é, nem de longe, uma obra ruim, pelo contrário, tinha tudo para ser uma das melhores aventuras solo do Universo Cinematográfico (MCU, na sigla em inglês), visto o incrível início da jornada de Kamala Khan na série, como cito em minhas primeiras impressões. Mas o tropeço no meio do show, que envolveu muito mistério não respondido e abrindo diversas possibilidades para as origens dos super-poderes da personagem, frearam uma aventura simples, teen e de autodescoberta.
A trama nos introduz à carismática adolescente Kamala Khan (a estreante Iman Vellani), filha de uma família paquistanesa que mora em Nova Jersey, e obcecada pelos atos grandiosos dos Vingadores e todos os heróis que habitam o universo – em especial a Capitã Marvel. Quando Kamala recebe um bracelete misterioso de sua avó, ganha poderes sobrenaturais que logo a colocam na mira de vários inimigos perigosos; ao mesmo tempo em que parte em uma jornada para entender a origem de suas habilidades.
Ms. Marvel chegou ao Disney+ igual Peter Parker chegou às bancas em junho de 1962: causando comoção e identificação. Stan Lee já disse diversas vezes que Peter é um herói para as pessoas olharem e se verem, o famoso gente como a gente. Mas, o público da Marvel Studios não é apenas homens que cresceram ou não lendo os quadrinhos, seu público nunca esteve mais amplo e diverso como agora. E Ms. Marvel, é um abraço quentinho à todas as garotas que conheceram agora esse universo ou que sempre acompanharam, para todos os fãs, uma carta aberta de amor.
É bonito ver como Kamala Khan é apenas uma adolescente que ama as mesmas coisas que muitos adolescentes gostam, a diferença é que ela vive no universo em que tudo acontece. Mas, ainda que a personagem consiga comover desde o seu primeiro segundo de tela, a Marvel Studios ainda comete os mesmos erros que cometeu em suas séries anteriores. Veja bem, por mais que o Disney+ garanta ao estúdio mais tempo de tela, até o momento, o MCU ainda não soube como aproveita-lo perfeitamente. Até WandaVision, que é aclamada como a melhor série do estúdio, sofre uma pequena barriga no começo da série e um desfecho um tanto super estimado.
A verdade é que o estúdio prometeu entregar séries com qualidade de cinema, mas atualmente, usa o streaming apenas para apresentar novos personagens que futuramente aparecerão nas telonas. Dessa forma, o MCU se prende ao padrão de criar projetos dentro de seis episódios de 30 minutos ou mais, mesmo quando não há onde estender. Assim enrolando em longos episódios que poderiam ser facilmente adaptados para uma pequena cena ou simplesmente excluídos da trama, o famoso episódio desnecessário.
E da mesma forma, o MCU peca com Ms. Marvel. Por mais que Iman Vellani consiga captar a atenção e carinho do público desde de seu primeiro segundo de tela, o roteiro se enrola e muitas vezes se afasta de sua protagonista, procurando ser algo maior do que deveria. Um tiro no escuro que retorna com grande impacto à atenção do telespectador. Ou seja, sem a atriz e seu carisma magnético, a série se perde e não prende.
Para quem tem alguma experiência com roteiro ou direção, por menos que seja o projeto, sabe a responsabilidade que é. Então, em meu trabalho como crítico, que já roteirizou e dirigiu projetos, sempre tento pensar no lado dos criadores em minhas avaliações, mas no caso de Ms. Marvel, fica inegável como uma direção coerente funciona, até melhor que um roteiro bem amarrado. O elogiadíssimo piloto da série, que definiu um tom, senso estético e de edição, foi dirigido pela dupla Adil El Arbi e Bilall Fallah ("Bad Boys Para Sempre"), que retornaram o último capítulo da aventura de Kamala, mostraram a falta que fizeram nos episódios que não comandaram.
E direção é muito mais sobre o projeto, do que necessariamente talento, afinal, é inquestionável o trabalho documental de Sharmeen Obaid-Chinoy, a cineasta é a primeira mulher do Paquistão a receber um Oscar e a primeira mulher a ganhar duas vezes. Ela recebeu o prêmio pelos seus documentários Saving Face e A Girl in the River: The Price of Forgiveness. Mas seu olhar documental foi responsável pelo mergulho errôneo na cultura paquistanesa, que se mostrou uma trama infrutífera e que afastou a série do tom juvenil dos primeiros episódios da série.
Essa quebra, não só em storyline, também aconteceu nos outros aspectos da direção da série, incluindo uma inspira direção de arte e fotografia, que injetam energia e emoção nas situações mais cotidianas – é um estilo maravilhoso e digno do que esperamos de uma adaptação de histórias em quadrinhos.
Como se não bastasse uma ótima Kamala, Ms. Marvel conta com um elenco de primeira, mesmo com bastante problemas no desenvolvimento de alguns deles, mas eles conseguem equilibrar a leveza necessária para uma série teen, como a diversidade necessária para tocar nos assuntos que são intrínsecos da personagem. Os destaques ficam para Nakia (Yasmeen Fletcher) a melhor amiga de Kamala, Mohan Kapoor e Zenobia Shroff, que interpretam o pai (Yusuf Khan) e a mãe (Muneeba Khan) da protagonista, e Matt Lintz dando vida ao melhor amigo Bruno Carrelli. Embora pareça óbvio, mas é sempre revigorante ver obras que retratam determinadas culturas e crenças não serem reinterpretadas por meio de uma equipe criativa e elenco majoritariamente branco.
Quando o assunto é vilania, a Marvel tende a falhar ao tentar criar um personagem marcante que segure uma história única. Nos cinemas, o estúdio falha ao tentar desenvolver personagens com grandes motivações e caráter, tal feito às vezes é jogado na conta da desculpa do: não tínhamos espaço suficiente. Mas, quando o estúdio ganha tempo de tela nas séries para ajudar a superar essa barreira que os acompanham à anos, o MCU falha novamente. É claro que: depois do Thanos que tinha todo um background trabalhado e desenvolvido, tudo parece fraco e sem cor. Entretanto, no caso de Ms. Marvel, apenas é fraco mesmo.
A Controle de Danos consegue arrancar mais risos por suas trapalhadas do que serem levados à sério. Assim como os famosos Stormtroopers que são capazes de errar qualquer tiro, esse grupo criado pelo governo após uma iniciativa do Stark – para controlar a bagunça que seus heróis deixavam na cidade – acabam se tornando apenas uma grande chacota policial. O que era para ser uma ameaça e um grande perigo para a jornada dessa heroína, acaba se tornando apenas um contratempo de roteiro. Uma pequena forma revisitar sua origem paquistanesa e denunciar o racismo – apesar disso ter sido mal explorado durante a série.
Aliás, o conservadorismo da Disney também tem medo de falar explicitamente sobre o racismo contra marrons, mesmo Kamran dizendo que “eles nunca serão aceitos" pelas pessoas e principalmente pela polícia local, e desde a primeira vez que o Controle de Danos apareceu Kamala Khan foi tratada como um ser hostil e perigoso, mesmo quando ela estava ajudando. O tom de sua pele acaba falando primeiro que suas ações. Porém – novamente – a Marvel se afasta do tema e não foca nele, e esse preconceito gritante se torna apenas uma vírgula dentro dessa história. Está mais que claro que o estúdio morre de medo de se adentrar nessas águas, então ao invés de ir fundo no assunto que ele mesmo trouxe a tona o pincela e deixa de lado.
Ms. Marvel bem que se sairia muito melhor se os grandes perigos envolvessem provas da escola ou castigos dos pais, mas infelizmente o lado MCU fala mais alto e não demora para que vilões de conceitos fracos, lutadores extradimensionais, viagem no tempo e sociedades secretas comecem a estragar o belíssimo tom e contexto perfeitamente estabelecido em seu terço inicial. É uma decisão que ainda acarreta em cenas de ação medianas, efeitos visuais de qualidade duvidosa e mudanças de comportamento apressadas em diversos personagens.
Dito tudo isso, o início promissor e a conclusão satisfatória, além claro, da excelente, Iman Vellani, são os pontos altos da série, que termina agridoce, mas com a direção nas mãos certas - por favor, que seja de Adil El Arbi e Bilall Fallah - pode fazer de Kamala Khan o que nem mesmo o Homem-Aranha conseguiu no MCU: uma conexão com o público jovem, sem perder a atenção dos mais velhos.
Ms. Marvel estará de volta em "As Marvels", mas somente em julho de 2023, nos cinemas.
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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor de filmes valvulado. Jornalista do Norte que invadiu o Sudeste para fazer e escrever filmes.