A aparência utópica de uma comunidade fechada na Califórnia dos anos 1950 esconde uma fonte de perigo difícil de decifrar, mas que parece estar afetando a mente de Alice (Florence Pugh), uma das muitas mulheres da vizinhança que vive o arquétipo da rotina feminina perfeita projetada no período. Seu marido Jack (Harry Styles) trabalha no chamado projeto Victory, responsável por essa vida luxuosa e de alta funcionalidade e sobre o qual jamais devem discutir com suas esposas. Após uma amiga começar a mostrar sinais de paranoia e desorientação, ela passa a questionar tudo que envolve o projeto e a realidade imaculada ao seu redor.
Não é necessário fazer muito esforço para perceber que Não Se Preocupe, Querida, em cartaz a partir de quinta-feira (22), está, a seu modo, reestruturando a ideia central de "O show de Truman", acoplando a ela a premissa sobre alienação e controle das mulheres por sociedades secretas que ficou célebre no perturbador "Esposas em Conflito". Outras referências importantes se acumulam a ponto de a simples menção poder estragar as surpresas que a história reserva – e não é de se espantar que parte do público consiga matar a charada com indesejada antecedência. O tolhimento das escolhas individuais mascarado por uma redoma de perfeição é sempre o mote dos suspenses dessa natureza e, nesse particular, este não tem tanto o que chamar de seu.
A diretora Olivia Wilde e os roteiristas Katie Silberman (“Fora de Série”) e Shane Van Dyke (“O Silêncio”) querem fazer o público pensar 5 minutos sobre machismo até o estacionamento. Apesar do tema mexer com as emoções atuais, o grande ganho deste filme é provocar reflexão ao mesmo tempo que oferece um bom mistério, com ótima interpretação de sua protagonista e um roteiro que visa, antes de tudo, a história.
Porém, nem tudo são flores. O longa escorrega feio em algumas decisões e não consegue perceber a hora de parar. A situação é somada às polêmicas “extracampo”, o que faz de Não Se Preocupe, Querida uma aula aberta de como boicotar algo que poderia ser excelente.
Neste suposto sonho de vida, que começamos o longa, diariamente temos festas, mesa farta, bebidas, vestidos maravilhosos e carros luxuosos. Há ainda, claro, uma mulher linda, cheirosa e arrumada que passa o dia em casa limpando, cozinhando e se preparando para receber seu marido de volta do trabalho já na porta, com um lindo sorriso e um copo de uísque na mão.
A cidade em questão foi criada por uma empresa e os homens trabalharam no que eles chamam de Projeto Vitória. Porém, com o passar do tempo e das situações, Alice começa a sentir que tem algo de errado naquele lugar, naquela empresa e em sua vida considerada perfeita.
Não há mais nada que eu possa dizer sobre o longa, além disso. A experiência do filme é justamente cada um de nós, junto da protagonista, descobrir progressivamente o que há de errado naquele lugar e sentir todo o sufocamento que a personagem traz em sua jornada.
Aqui, o roteiro antes de tudo visa a história e o mistério em torno de tudo aquilo que a protagonista vive. Quando é necessário abordar o machismo, é feito de forma inteligente e verdadeira, como um diálogo que não se limita a chavões atuais. É uma maneira eficaz de passar a mensagem sem entrar em conflito; ao mesmo tempo que é sutil, tem o poder de até mesmo fazer uma pedra refletir.
Sendo assim, o longa é bem filmado, temos aqui ótimas cenas e boas construções de momentos de terror e mistério. A questão da personagem se sentir sufocada por uma rotina que pra muitos é considerada a perfeita, é muito bem desenhada pelos olhos da promissora diretora. Os tempos psicológicos do filme são muito bem trabalhados, as cores usadas transformam tudo em um espetáculo perturbador e os atores todos corretos em seus trabalhos.
Infelizmente, “Não Se Preocupe, Querida” provoca uma autossabotagem ao não saber quando parar. No momento mais importante, de concluir todo aquele mistério, há uma falha grave no roteiro e na direção por mais incrível que seja a solução de tudo aquilo.
Houve ao menos uns quatro momentos na reta final em que fui traído após pensar: “bom, agora acabou”. Vinham mais cenas com explicações, novidades, informações, reviravoltas. E mesmo assim o final fica um tanto quanto aberto. Chega a ser uma situação sufocante igual à da personagem — chegamos ao ponto de haver até mesmo uma passagem envolvendo uma explosão no maior estilo Yelena Belova, a Viúva Negra da Marvel a ser interpretada por Florence Pugh.
O clímax da obra dura cerca de meia hora. Nas mãos de um diretor mais hábil, em menos de dez minutos tudo teria sido resolvido e revelado de forma muito mais assustadora e impactante do que foi.
Quando a personagem de Florence Pugh - em mais uma demonstração formidável de presença - assume um papel ativo na trama, o filme melhora significativamente: a direção adquire objetividade, a inspirada trilha sonora composta por John Powell cresce e as cenas conversam melhor umas com as outras. Essas virtudes não escondem que a resposta do mistério é flagrantemente reciclada, mas suficientemente coerente com algumas das ideias trazidas pelo roteiro.
O que realmente atrapalha as ambições de Não Se Preocupe, Querida, no entanto, é não explorar particularidades dessa explicação e usar a reviravolta apenas como artifício de choque, jogando um montante de pistas do primeiro ato pela janela. Na falta de uma resolução de impacto, a casa de boneca lustrosa e paradisíaca que Olivia Wilde constrói para Alice e para o público acaba desabando sobre os dois, ainda que traga boas recompensas no caminho.
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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor de filmes valvulado. Jornalista do Norte que invadiu o Sudeste para fazer e escrever filmes.